segunda-feira, 26 de abril de 2010

Beowulf, o livro perdido

Os deuses pagãos eram apresentados ao povo
escandinavo como grandes guerreiros, dotados
de virtudes de combate, força e temeridade


É possível perceber que, embora seja um poema heróico sobre o povo escandinavo, o manuscrito sempre esteve em solo inglês onde foi escrito e possivelmente compilado. O que chama a atenção dos especialistas é o fato de Beowulf estar carregado de elementos religiosos cristãos e não pagãos. “Até o começo da década de 1930 acreditava-se que Beowulf era um texto pagão que havia sofrido algum processo de cristianização por monges ou copistas nos anos seguintes a sua conclusão. Hoje, porém, discute-se outra teoria: pode realmente ter sido um texto pagão, mas que foi transmitido pela tradição oral e, quando o manuscrito foi escrito, por volta do ano 1.000, pode ter sido desenvolvido em uma situação completamente cristã”, explica Elton Medeiros, que prepara sua própria tradução do épico. “Seria, então, um texto cristão que sofreu muitas influências pagãs”, completa.


Pedra com escritos rúnicos localizada na Suécia.
A mensagem celebra Assur, que morreu
em 1010 lutando pelo imperador bizantino
e relata a morte de outros dois vikings.

Pode-se encontrar esses elementos cristãos logo no início do texto, quando o autor fala sobre a destruição causada por Grendel no palácio de Hrothgar. A passagem da obra diz que os homens punham-se a rezar pedindo proteção em templos pagãos, o que não surtiria nenhum resultado positivo - isso sugere que apenas o deus cristão poderia trazer proteção aos nórdicos sitiados pelo monstro. Sendo assim, podese supor que o próprio autor era cristão. Contudo, acredita-se que ele conviveu com a cultura e tradição escandinavas por algum tempo, por conta de seu conhecimento sobre o assunto, embora não concordasse com todos os seus ritos religiosos.

De qualquer forma, o autor não deixou de mencionar no livro esses velhos hábitos da religião pagã, como o ato de cremação dos condenados pelo cristianismo. Para os nórdicos, queimar o corpo dos guerreiros tombados era algo natural; para os cristãos, o corpo não poderia ser destruído, pois os mortos voltariam após o Juízo Final. “Podemos considerar que as sociedades anglo-saxônica e escandinava eram muito próximas. Então, é por isso que temos essa mistura de elementos”, conta Medeiros. “É uma mescla bastante curiosa de religiões, pois o próprio Grendel é descrito no texto como sendo descendente da linhagem de Caim”.

O historiador esclarece ainda que o deus cristão presente no texto é o do Velho Testamento, que é apresentado de forma diferente da divindade do Novo Testamento. Esse deus é heróico e podia conceder força aos heróis para que tivessem capacidade de combater e expulsar o mal. “É a idéia de que Beowulf conseguia vencer Grendel com a ajuda de Deus”, conta. Esse conceito religioso está próximo do pensamento nórdico da Idade Média, mas também tem muita relação com a Inglaterra de um período tardio anglo-saxônico.

TEORIA DA CORAGEM DO NORTE

A principal razão pela qual os nórdicos combatiam com tanta sagacidade, mesmo em situações completamente adversas, era a inspiração vinda da própria religião pagã. Embora Beowulf tenha recebido uma alta carga de cristianização, é possível identificar essa virtude na obra. Os deuses pagãos eram apresentados ao povo escandinavo como grandes guerreiros, dotados de virtudes de combate, força e temeridade. Pela saga de Frithiof, Th or, o deus do trovão, era destemido e, caso fosse necessário, estava sempre disposto a se lançar à morte certa em campo de batalha, sem titubear: “Thor será sempre o sustentáculo/dos que não se arreceiam de qualquer obstáculo/Aquele que pode contar com a sua espada/Domina o seu destino e não teme nada”, diz a tradição.

Este elemento está presente em toda a narrativa de Beowulf, a começar pela viagem do personagem principal à Dinamarca. Em um ato de extrema bravura, o herói cruza o mar voluntariamente para confrontar Grendel e, com isso, salvar Hrothgar e seu reino da destruição iminente. O guerreiro é retratado como o mais bravio combatente de sua comitiva, com a força de 30 homens e com a valentia semelhante à de um hoplita espartano, o que o estimulava a jamais refugar em campo de batalha. É inegável que a obra carrega essas características das divindades nórdicas do período pagão. A razão é que o povo da época era criado em uma cultura guerreira que os estimulava a ser virtuosos na guerra - a sociedade acabou sendo influenciada pela mitologia.


Ilustração de manuscrito do séc. XVII
que conta a saga dos reis da Noruega.

Essa coragem extrema é conhecida por alguns especialistas como Teoria da Coragem do Norte, ou simplesmente Teoria da Coragem. Há, contudo, duas teses que justificariam essa bravura. A primeira é que, pela crença do povo nórdico, há um grande evento chamado Ragnarök, o crepúsculo dos deuses. Esse acontecimento levaria ao fim do mundo após uma grande guerra entre as forças do bem e do mal, envolvendo todos os deuses e heróis. Esta é uma batalha que opõe os Aesir, liderados por Odin, a um exército liderado pelo deus Loki. Ambos os lados contariam com grandes guerreiros em combate - quase todos acabariam sendo mortos no confronto.

O destino deste conflito é trágico: Odin fere mortalmente o lobo Fenrir, filho de Loki, mas também tomba no combate; Th or consegue derrotar Jomungard, uma serpente gigante, mas acaba sendo envenenado e também morre; um dos mais valentes guerreiros dos Aesir, Heimdall, vence Loki, mas cai em seguida. Por fim, Midgard, a Terra dos mortais, é consumida pelas chamas.

Sendo assim, a própria religião escandinava da Idade Média pré-cristã pregava a idéia de que todos os heróis teriam o mesmo destino: estavam fadados a perecer na guerra. Entretanto, isso não era suficiente para que os guerreiros evitassem as guerras. Pelo contrário: mesmo diante da morte certa os guerreiros não declinavam de sua missão, pois mesmo a derrota podia trazer glória. O autor do poema mostra um Beowulf heróico, consciente de seu destino final e, mesmo assim, ávido pelo combate. Até certo ponto é algo bastante semelhante à mitologia grega, mas com uma diferença crucial: os helenos acreditavam na glorificação pelo sacrifício, conhecida como bela morte, porém este não era um elemento necessariamente ligado à religião, mas sim à própria cultura da Antiguidade.


Representação do Ragnarok feita pelo
ilustrador alemão Johannes Gehrts.

Johnni Langer, no entanto, não associa a Teoria da Coragem com o Ragnarök - embora continue argumentando com base na religião pagã. Para ele, a bravura dos escandinavos estava mais ligada diretamente aos cultos a Odin, e não ao grande confronto entre os deuses. Segundo ele, os guerreiros nórdicos pertenciam a uma aristocracia odinista. “A idéia máxima entre os odinistas é que o guerreiro deveria morrer em batalha para poder alcançar o Valhala, o paraíso presidido pelo deus Odin. Esse ímpeto de tombar em combate dava uma coragem a mais”, afirma.

De acordo com essa corrente de pensamento, o Ragnarök pode ter sido um conceito criado pelos nórdicos no fim do paganismo, já sob forte influência cristã: seria, neste caso, uma espécie de Apocalipse para o povo escandinavo.


Pintura do norueguês Peter Nicolai Arbo (1831 – 1892)
representando a morte de Olav II da Noruega, mais tarde Santo Olavo,
morto na Batalha de Stiklestad, em 1030, lutando contra o exército
pagão que se opunha a sua tentativa de cristianização da Noruega.

A CHEGADA DOS VIKINGS À AMÉRICA DO NORTE

Não é à toa que o poema Beowulf representa tão bem o cotidiano do povo escandinavo da Idade Média. Os nórdicos, tanto da era pré-viking quanto da posterior, realmente tinham uma grande tendência a ser exploradores, característica que sempre os levava a desbravar novas expedições em terras além-mar. O herói da obra literária viajou uma distância relativamente pequena para confrontar-se com o desconhecido. No entanto, nos séculos seguintes, os desbravadores vikings conseguiram chegar à América do Norte e criar assentamentos antes mesmo de Cristóvão Colombo pisar nas terras do novo mundo.

Segundo o historiador James Graham-Campbell, da University College London (Inglaterra), os navegadores nórdicos descobriram o território do continente americano por volta do ano 1.000 - época em que os textos integrantes de Beowulf provavelmente foram compilados. Eles tiveram um contato bastante expressivo com os nativos, embora não se possa dizer que eles subjugaram os índios. “Eles não conquistaram territórios por lá. Sabemos da criação de apenas um assentamento, que não durou muito tempo”, diz. Contudo, para alguns grupos de nativos, a presença nórdica nas terras americanas foi marcante, chegando inclusive a travar combates violentos, de acordo com o arqueólogo Stephen Harding, da University of Nottingham.

Porém, a chegada dos escandinavos ao novo mundo foi um processo gradativo. O historiador Johnni Langer argumenta que, primeiramente, os vikings chegaram à Islândia. “Ocorreu uma fuga de colonos noruegueses do reinado de Harald Cabelos-Finos, pois não concordavam com sua política, e foram à Islândia, já conhecida, mas ainda não povoada e colonizada. Depois, o famoso Erik, O Vermelho, foi expulso da Islândia por ter matado muitas pessoas; levou algumas famílias e acabou colonizando a Groenlândia. Depois de um certo tempo, acabaram fundando Vinland, a famosa terra das uvas, onde formaram uma colônia que durou três anos”.Esse assentamento teria sido fundado onde hoje é o Canadá, mas alguns especialistas também defendem que pode ter se localizado nos Estados Unidos, onde haveria terras mais quentes e, desta forma, possíveis de se produzir uvas. De qualquer forma, essa pode ter sido apenas uma forma de atrair novos colonos da Escandinávia com a falsa promessa de que na terra nova era possível criar fazendas mais produtivas. “Essa terra nova teria sido colonizada pela necessidade de novas terras de colonização, pelo espírito exploratório que os escandinavos tinham no período. Esse assentamento foi abandonado por causa da hostilidade das tribos indígenas locais e pela grande distância das demais nações nórdicas”.

.:: Leituras da História


<--1ª Parte

Um comentário:

Um contador de Histórias disse...

Não sou grande estudioso, mas penso que, se Beowulf foi escrito em torno do ano 1000, e não no século VII ou VIII, poderia ser uma versão da história de Buliwyf, herói rus (grupo de escandinavos que se mudaram para a atual Rússia e acabaram nomeando esse país) que viajou de volta à Escandinávia para salvar o reino de Rothgar, rei nórdico que, por coincidência, tinha um salão chamado Hurot e parecia ser a causa dos problemas do reino de Rothgar.
Buliwyf ainda tem semelhanças com Beowulf quanto ao nome de parentes. Buliwyf era filho de um rei Higlac, e pelo que me lembro Beowulf era filho/sobrinho de um rei com nome semelhante.
No manuscrito do emissário árabe, o grupo de Buliwyf, que além deste e do árabe é composto por outros 11 homens do norte, tem que enfrentar criaturas chamandas de "wendol" ou algo que o valha (Ibn Fadlan não teve certeza quanto ao nome das criaturas, mas o som assemelhava-se com esse), que mataram grande parte dos nobres e do povo de Rothgar.
Logo no primeiro combate com os wendol, Buliwyf teria arrancado o braço de uma das criaturas com sua espada que, pelo que os homens do norte disseram, havia pertencido a gigantes e era de tamanho descomunal. Os wendol não tinham por hábito deixar seus mortos para trás, muito provavelmente por temerem que fossem comidos, pois era isso que faziam com os derrotados inimigos.
A história é longa pra ser contada aqui, mas os wendol aparentam ter um "parentesco" com neandertais (a descrição de Ibn Fadlan de uma criatura morta se encaixa com a descrição de um neandertal feita pela ciência), e para derrotar essas criaturas Buliwyf precisou entrar na caverna usada como abrigo através de uma passagem subaquática e matar a "mãe" dos wendol.
Muita semelhança.